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Há pelo menos dois casos suspeitos de envenenamento de vida selvagem por mês, em Portugal.

Apesar das graves consequências para a biodiversidade e para a saúde pública, a impunidade é quase total.
 
O uso de venenos para matar animais selvagens ou domésticos, apesar de constituir um crime punível com pena de prisão, continua a ser uma prática relativamente comum em Portugal e no Mundo, que põe em risco a biodiversidade, os animais domésticos, e também as pessoas.

Venenos: um problema com consequências muito sérias

Os venenos são substâncias usadas de forma ilegal para controlar predadores carnívoros como lobos, raposas, ginetas ou cães errantes, sobretudo em áreas rurais e no contexto das atividades cinegéticas ou agropecuárias. Também são utilizadas de forma recorrente e intencional em situações de conflitos locais (como desentendimentos entre vizinhos), ou de forma negligente no âmbito da agricultura ou silvicultura. No entanto, além de atingirem os alvos diretos, os venenos acabam por afetar também outras espécies selvagens que ingerem os iscos, e animais domésticos – cães, gatos ou gado em regime extensivo. Indiretamente, impactam espécies que se alimentam dos cadáveres de animais envenenados, como as aves necrófagas. Adicionalmente, os venenos podem ser ingeridos de forma acidental por pessoas, nomeadamente por crianças, e contaminar solos e água, representando uma grave ameaça à saúde pública e à segurança e ao bem-estar também das comunidades humanas.

Alguns dos venenos utilizados, como a estricnina, são substâncias altamente tóxicas emortais, proibidas há muitos anos em Portugal, outros são fitofármacos ou pesticidas adquiridos com relativa facilidade. Apesar dos perigos sérios e da legislação existente, o uso de venenos permanece uma prática comum em muitos países, e Portugal não é exceção.

 

O envenenamento é uma das principais ameaças à conservação da biodiversidade, e tem impactos severos, principalmente sobre espécies já em risco. Os venenos podem mesmo causar a extinção de populações silvestres a nível local ou regional, e impactar ecossistemas inteiros de forma devastadora. Naturalmente, devido ao tipo de alimentação e comportamento, há grupos animais particularmente vulneráveis ao envenenamento, como é o caso das aves necrófagas. No caso dos abutres, o envenenamento é mesmo a principal causa de morte não natural, a nível global.


LIFE Aegypius Return no combate antivenenos

Em Portugal, apesar do número de casos com suspeitas de envenenamento ter vindo a baixar nas últimas décadas, o uso ilegal de venenos ainda representa uma ameaça significativa para a vida selvagem, e com efeitos mais severos no caso de espécies protegidas e em risco de extinção.

Para ajudar a combater este problema, o projeto LIFE Aegypius Return – que se foca na conservação do abutre-preto (Aegypius monachus) no nosso país e no oeste de Espanha – promove uma estreita cooperação com a Guarda Nacional Republicana (GNR) e o seu Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA), bem como com o Programa Antídoto Portugal (PAP), coordenado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

O PAP é o programa oficial responsável por garantir que todos os casos suspeitos de envenenamento sobre espécies ameaçadas e prioritárias sejam formalmente investigados e que as provas sejam recolhidas e analisadas de acordo com a cadeia de custódia estabelecida.

O projeto LIFE Aegypius Return prevê também o reforço das capacidades de intervenção da GNR. Neste contexto, três novos cães estão a concluir o treino especializado para deteção de venenos, para posterior integração no Grupo de Intervenção Cinotécnica (GIC). Em breve, o GIC terá um dispositivo de atuação reforçado e dois novos binómios de deteção de venenos estarão sediados na Guarda, o que permitirá uma intervenção mais rápida no centro e norte do país. A GNR tem ainda um papel fundamental na vigilância e na redução da perturbação em torno das colónias reprodutoras de abutre-preto. Desde o início do projeto, em setembro de 2022, os militares já realizaram aproximadamente 200 patrulhas preventivas nas áreas abrangidas, cerca de um terço das quais com patrulhas cinotécnicas. Estas ações preventivas têm tido um importante valor pedagógico e dissuasor de infrações, com resultados diretos na tranquilidade das aves e, logo, no seu sucesso reprodutor.


Patrulhas cinotécnicas preventivas com binómios da GNR ©GNR


Diagnóstico dos casos de envenenamento em Portugal

O projeto LIFE Aegypius Return publicou recentemente um relatório que analisa os dados de casos suspeitos de envenenamento registados pela GNR/SEPNA desde 2021, comparando-os também com dados anteriores (de 2013 a 2018), compilados no âmbito do projeto LIFE Imperial, que se focou na conservação da águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti), uma espécie Criticamente em Perigo. O relatório apresenta ainda dois casos de estudo, para melhor compreensão das dinâmicas e limitações inerentes à deteção e investigação de casos suspeitos.

Os dados compilados indicam que, de janeiro de 2013 até junho de 2024, a GNR/SEPNAregistou 225 casos suspeitos de envenenamento, que afetaram 385 animais domésticos e selvagens terrestres. Durante esse período, foram afetados números significativos de espécies protegidas e ameaçadas, entre as quais o milhafre-real (Milvus milvus, 71 indivíduos), a águia-imperial-ibérica (16 indivíduos), o abutre-preto (9 indivíduos) e o lobo-ibérico (Canis lupus signatus, 3 indivíduos).

Analisando apenas o conjunto de dados mais recente, registados pela GNR/SEPNA desde janeiro de 2021, foram registados em Portugal continental 84 casos em que os indícios apontavam para envenenamento, numa média de dois casos por mês. Estes casos resultaram na morte de um total de 131 animais terrestres. Os animais potencialmente envenenadospertenciam a 17 espécies, com 53% (n=70) de animais domésticos (cães, gatos, aves e uma ovelha) e 47% (n=61) de animais selvagens. As espécies selvagens mais afetadas foram o milhafre-real (21 indivíduos mortos), cujas populações reprodutoras estão criticamente em perigo; a raposa (Vulpes vulpes, 13 indivíduos); o grifo (Gyps fulvus, 6 indivíduos); a cegonha-branca (Ciconia ciconia, 6 indivíduos); a águia-imperial-ibérica (5 indivíduos); e o abutre-preto (2 indivíduos), espécie em perigo de extinção.


Deteção de um abutre-preto, morto, com sintomas de envenenamento; e recolha do cadáver pelas autoridades, conforme protocolo do Programa Antídoto Portugal. ©ATN/Faia Brava


Em cada período analisado, a distribuição geográfica dos casos registados apresenta variações, no entanto, os distritos de Beja, Castelo Branco e Bragança aparentam manter uma certa consistência no maior número de casos.

De um modo geral, nos últimos anos parece estar a verificar-se um ligeiro decréscimo no número de casos suspeitos, bem como no número de animais afetados, porém, os dados apresentam flutuações entre diferentes anos e ainda é cedo para tirar conclusões quanto a esse respeito.

Sempre que possível, durante a investigação destes casos suspeitos são recolhidas amostras, como os iscos ou cadáveres eventualmente detetados, bem como solo ou outros materiais potencialmente contaminados, que são encaminhados para análises nos laboratórios de referência. Na base de dados da GNR, a confirmação do uso de venenos apenas consta em 9 dos 84 casos registados desde 2021 (c. 11%). Esses casos causaram a morte de 12 animais: três milhafres-reais, três raposas, um grifo, e ainda quatro cães e um gato doméstico.



Localização dos casos suspeitos (n=75; pontos azuis) e confirmados (n=9; pontos vermelhos) de envenenamento registados pela GNR/SEPNA em Portugal continental, entre 01/01/2021 e 30/06/2024. Lilás – Colónias de reprodução de abutre-preto.  ©LIFE Aegypius Return


Um sistema legal com muitas limitações

A limitação técnica dos laboratórios oficiais portugueses em detetar a presença de venenos nas amostras recolhidas em campo é uma das grandes restrições à aplicação integral do PAP e à instrução dos processos. Por vezes, as contra-análises efetuadas às mesmas amostras, a pedido de organizações não governamentais de ambiente (ONGA) noutros laboratórios com equipamento mais moderno e mais sensível a menores dosagens, têm revelado resultados positivos, que – não se enquadrando na cadeia de custódia oficial – não têm validade legal na instrução formal dos processos, que acabam arquivados com base em falsos negativos.

Outro constrangimento é que o protocolo formal do PAP nem sempre é totalmente aplicado em todas as fases do processo, seja devido à limitação de recursos humanos e técnicos, à incapacidade de resposta imediata de todas as partes envolvidas, ou a obstruções burocráticasdemoradas, que não se compadecem com a necessidade de atuação urgente destes casos.

Os dados apresentados estão certamente subdimensionados, uma vez que muitos casos poderão não ter sido detetados, ou poderão ter entrado nos registos legais através do PAP, dos centros de recuperação para a fauna, ou de outras autoridades. Não está disponível uma base de dados integrada e atualizada de forma contínua, que permita às autoridades um cruzamento da informação rápido e eficaz. Similarmente, nem sempre a entidade que reporta os casos recebe retorno sobre a conclusão da investigação, ficando a respetiva base de dados incompleta. Estas lacunas associadas ao reporte e gestão dos casos dificultam uma análise criteriosa e mais precisa da situação do uso de venenos em Portugal, o que pode contribuir para a subestimação do problema.

Por fim, a decisão final dos casos depende ainda da avaliação de Procuradores e Juízes que têm diferentes sensibilidades ao crime ambiental. Num sistema em que os recursos são escassos, muitas vezes os crimes contra a vida selvagem acabam por não ser priorizados e sãoarquivados, por falta de identificação de suspeitos e prova após uma investigação básica.

Certo é que, em Portugal, são quase inexistentes os casos de condenação em casos de envenenamento de animais selvagens, o que perpetua um certo sentimento de impunidade, face à complexidade na identificação destes suspeitos. Embora, de um modo geral, haja uma maior atenção aos crimes contra a vida selvagem, e uma intensificação dos esforços para travar e combater estas práticas ilegais, tanto a perceção pública quanto o sistema legal estão ainda longe do que seria necessário e desejado. Por esse motivo, vários projetos de conservação, como o LIFE Aegypius Return, colaboram com as autoridades competentes no sentido de identificar e reparar falhas, acompanhar a instrução de processos, discutir soluções que aumentem a eficácia dos procedimentos, em todas as fases, e, assim, contrariar a impunidade e reforçar o combate antivenenos.



Como colaborar na luta contra o uso de venenos?

Qualquer cidadão pode ajudar no combate antivenenos. A luta contra estes crimes exige ação de todos, não apenas das autoridades ou dos conservacionistas. O passo mais importante é estar informado, atento, e denunciar todos os casos de crimes contra a vida selvagem. Assim, caso detete algum caso suspeito, contacte de imediato as autoridades, através da Linha SOS Ambiente e Território: 808 200 520, e forneça o máximo de informações possível. Nunca toque em cadáveres, iscos ou material potencialmente contaminado, nem permita que alguém interfira num possível local de crime até as autoridades chegarem.



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